Deixemos a vaidade do mundo!
“Jesus, tendo saído daquele lugar, retirou-se para a região de Tiro e Sidônia...”(Mt 15,21). “Jesus,tendo saído...”etc. A saída de Jesus representa a saída de toda pessoa humana que se converte e sai davaidade do mundo. Sobre isto, se lê e se canta na história deste domingo (2º da Quaresma): “Tendo Jacósaído de Bersabéia partiu para Harã (Gn 28,10). Eis como concordam os dois Testamentos: “Jesus, tendosaído daquele lugar, retirou-se para a região de Tiro e Sidônia”, diz Mateus. “Jacó, tendo saído de Bersabéia,partiu para Harã”, diz Moisés no Gênesis. “Jacó é interpretado como 'suplantador’ e representa o pecador convertido que, sob a planta (do pé) da razão pisa, esmaga a sensualidade da carne. Ele sai de Bersabéia,que se interpreta `sétimo poço’, indicativo da insaciável cobiça deste mundo que é a raiz de todos os males.Deste poço fala João no seu evangelho, colocando as palavras da Samaritana na conversa com Jesus:“Senhor! Nem sequer tens uma vasilha e o poço é profundo”. E Jesus responde: “Todos aqueles que beberemdesta água, ainda terão sede” (Jo 4,11.13). Ó Samaritana! Disseste com toda razão e verdade que o poço éprofundo. Com efeito, a cobiça do mundo é profunda, exatamente porque não tem o fundo da suficiência, dasaciedade. Por isso, quem quer que seja que beber da água deste poço, entendida como riquezas e prazerestemporais, terá sede de novo. E é verdade mesmo, devemos repetí-lo, porque até Salomão o diz nasparábolas: “A sanguessuga tem duas filhas que dizem: Quero mais, quero mais” (Pv 30,15). A sanguessuga éo diabo que tem sede da nossa alma e deseja bebê-la. Suas são a duas filhas, isto é, as riquezas e osprazeres que sempre dizem: “Quero mais, quero mais” e nunca “Basta!” Diz também o Apocalipse: “Do poçosubiu uma fumaça como a fumaça de uma grande fornalha, de modo que o sol e o ar ficaram escuros por causa da fumaça do poço. E da fumaça se espalharam gafanhotos pela terra” (9,2-3). A fumaça que cega osolhos da razão sobe do poço da cobiça mundana que é a grande fornalha da Babilônia. Por causa dessafumaça é que se obscureceram o sol e o ar. O sol e o ar simbolizam os religiosos. “Sol”, porque os religiososdevem ser sempre puros, cheios de afeição e lúcidos: puros pela castidade, cheios de afeição pelo amor elúcidos pela pobreza. “Ar”, porque eles devem ser “aéreos”, quer dizer, contemplativos. Infelizmente, por causa de nossos pecados, saiu a fumaça do poço da cobiça e já defumou a todos. É por isso que Jeremiasdeplora nas Lamentações: “Ai! Como se escureceu o ouro, como mudou sua mais esplêndida cor!” (Lm 4,1).Sol e ouro, ar e cor esplêndida significam a mesma coisa. O esplendor do sol e do ouro se obscureceu, o ar ea cor mudaram. E observe-se bem a exatidão com que Jeremias disse: “escureceu e mudou”. Com efeito, afumaça da cobiça escurece o esplendor da vida religiosa e obscurece a esplêndida cor da contemplaçãoceleste, na qual o vulto da alma torna-se misticamente invadido por uma esplêndida cor, isto é, torna-secândido e vermelho: cândido pela encarnação do Senhor, vermelho pela sua paixão, cândido pelo brancomarfim da castidade, vermelho pelo ardente desejo do esposo celeste. Lamentavelmente, esta esplêndidacor, hoje em dia, está bastante deteriorada porque foi defumada pela fumaça da cobiça, sobre a qual aindaestá escrito: “E da fumaça do poço saíram gafanhotos pela terra”. Os gafanhotos, pelos saltos que dão,representam todos os religiosos, os quais, com ambos os pés da pobreza e da obediência, devem saltar paraa altura da vida eterna. Infelizmente, porém, com um salto para trás, da fumaça do poço, eles saíram pelaterra e, como se diz no Êxodo, “cobriram a superfície da terra” (10,5). Hoje não se vêem mercados, não sefazem reuniões civis ou eclesiásticas nas quais não se encontrem monges e religiosos. Compram erevendem, “constroem e destroem, tornam redondo o que era quadrado” (Horácio, Epist.), isto é, torcem eretorcem qualquer coisa. Nos processos convocam as partes, brigam diante dos juizes, pagam legistas eadvogados, induzem testemunhas a jurarem junto com eles por coisas transitórias, frívolas e vãs. Dizei-me, óreligiosos insensatos, se nos profetas ou nos evangelhos de Cristo ou nas cartas de Paulo, se na regra deSão Bento ou de Santo Agostinho vós encontrastes essas brigas, essas distrações, esses clamores e essasdeclarações nos processos por coisas efêmeras e caducas. Ou pelo contrário, não é o próprio Senhor que dizaos Apóstolos, aos monges, a todos os religiosos e não a modo de conselho, mas de ordem mesmo, já queescolheram o caminho da perfeição: “Eu vos digo: amai os vossos inimigos, fazei o bem àqueles que vosodeiam; abençoai aqueles que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos caluniam. E a quem te bate numaface, apresenta-lhe também a outra. E a quem te leva o manto, não recuses a túnica. Dá a quem te pede enão reclames de quem toma o que é teu. Como quereis que os outros vos façam, fazei também a eles. E seamais apenas os que vos amam, que méritos tereis? Os pecadores também amam aqueles que os amam. Ese fazeis o bem aos que vo-lo fazem, que méritos tereis? Até mesmo os pecadores agem assim” (Lc 6,27-33).Esta é a regra de Jesus Cristo que deve ser preferida a todas as regras, instituições, tradições, invenções,porque “não há servo maior que seu patrão, nem apóstolo maior que aquele que o enviou” (Jo 13,16).Observai, escutai e vede, ó povos todos, se existe bobeira, se existe presunção igual à deles. Em suas regrase constituições está escrito que cada monge ou cônego tenha duas ou três túnicas e dois pares de calçados,de acordo com o inverno ou o verão. Se por acaso acontece de não terem essas coisas no tempo e no lugar que querem, dizem que não se está observando o que é mandado e isso vai mesquinhamente contra a regra.Olhai com que escrúpulo querem observar a regra naquilo que é prescrito em vantagem do corpo, mas aregra de Jesus Cristo, sem a qual não podem salvar-se, observam pouco ou nada. E o que direi do clero edos prelados da Igreja?
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